Por Rodrigo M. G. Oliveira.

Este conto é o primeiro de uma série que escrevo sobre os arcanos maiores do Tarô. No caso, a carta O LOUCO, a carta de número 0.

Enquanto os arcanos de I a XXI mostram a trajetória do indivíduo, a carta do Louco, o arcano “zero”, mostra o próprio indivíduo que “vivencia” cada situação ilustrada pelas outras cartas. Ele enfrenta os obstáculos, as situações, as vitórias e derrotas, sempre tentando aprender e evoluir, para que, no final, possa se sentir completo.

A carta do Louco representa um grande potencial, um indivíduo que não tem medo do futuro. Ela representa a liberdade, o espírito de aventura, uma página em branco, que anseia por ser preenchida de alguma forma. O Louco possui pouquíssimo controle sobre sua própria vida. Como a própria carta ilustra, ele caminha sem nem olhar para a direção, ignorando os alertas que podem surgir (representados pelo cachorro que tenta detê-lo).

*** *** ***

01:38 de uma madrugada nublada. Ricardo dirigia tenso, concentrado, hipnotizado pelo fluxo contínuo das faixas brancas do meio da estrada, iluminadas pelo farol do seu Audi. Apenas o leve som do motor e o ronronar do ar-condicionado podiam ser ouvidos no interior do carro. O silêncio foi abruptamente interrompido pela voz de seu irmão.

— Põe um som aí, Ric. Este silêncio está me matando.

— Qual?

— Qualquer um.

Com cuidado, para não se descuidar do volante, Ricardo abriu o porta-luvas e pegou um CD ao acaso, dentre os vários que lá estavam jogados. Leu na capa: “The Best of Guns N´Roses”. Colocou o disco no player e apertou a tecla random.

Faixa 02. Welcome to the Jungle.

A música começou a tocar e amenizou a tensão do ambiente. Ricardo se sentiu tragado de volta para o mundo. O hipnotismo da estrada se fora. Olhou para o céu, fechado por pesadas nuvens, o vento balançando as copas das árvores à beira da rodovia. Olhou para o lado. Seu irmão fitava a janela, distraído, calado. Não se via nada, apenas vultos do que poderiam ser árvores ou casas ou cercas ou montanhas, passando rapidamente. Não sabia precisar o quão rápido viajavam. Olhou para o velocímetro. Centro e dez quilômetros por hora.

Queria chegar antes da chuva que se anunciava. Começou a pensar sobre a distância que estavam, a velocidade do carro. Quilômetros por hora, velocidade média, distância entre dois pontos. Desistiu, depois que todos aqueles cálculos o lembraram da escola. Não estava mais na escola. Não queria pensar na escola. Nunca fora bom em matemática. No último semestre, suas notas haviam sido um verdadeiro desastre. A expressão de raiva no rosto de seu pai ainda estava gravada na mente de Ricardo quando lhe informou que repetiria o ano. Chamou pelo irmão.

— Matheus?

Ele não respondeu. Agora não mais ouvia o motor do carro ou o ar-condicionado, apenas a guitarra frenética de November Rain. Os primeiros pingos d´água batiam no pára-brisa.

— Matheus?

Mais uma vez não obteve resposta. Seu irmão estava compenetrado, olhando pela janela lateral, à procura de algo que ele não sabia bem o que era. Podia vislumbrar, levemente, sua expressão pelo vidro do carro, uma expressão vazia, distante, como se ele não estivesse ali. Seus olhos eram escuros e vazios.

“Nós não deveríamos estar aqui” — pensou Ricardo.

Seu pai os proibira de sair de casa. Aos dois, até o final do ano. E nem era por causa das notas baixas na escola. Nos últimos meses, Ricardo e seu irmão, Matheus, aprontaram poucas e boas, palavras dele.

— Matheus?

Este, finalmente, se virou.

— Você… você sabe que eu não queria… — questionou Ricardo.

— Sim, eu sei. Você já disse isso. Mas esta não é a única saída, acredite. — Matheus respondeu, seco, frio, distante, e voltou sua atenção para fora do carro novamente. Diante da frieza e indiferença do irmão, Ricardo sentiu uma raiva subir pela garganta.

Faixa 07. Patience.

Voltou sua atenção para a direção, tentando esquecer a raiva e frustração que sentia. Outro carro vinha na pista oposta em alta velocidade. Parecia o carro do seu pai. Lembrou-se dele.

“Papai vai ficar furioso… Bem… vai ficar mais furioso ainda do que já está…”

Por mais que não quisesse, a escola estava, novamente, em seus pensamentos. Os colegas, os professores, as brincadeiras. Matheus sempre foi mais popular. Era alto, bonito e forte. Muita musculação e anabolizantes. Ele não. Baixo e gordinho, boas notas (menos em matemática), era conhecido como o “irmão do Matheus”. Não ligava. Achava legal. Os dois eram muito amigos. Eles sentiam que se completavam. Se completavam como irmãos, como amigos, companheiros em tudo. E quando as brincadeiras começaram, todos achavam graça. Principalmente Ricardo.

A chuva engrossava. A estrada estava ficando escorregadia. Diminuiu a velocidade até chegar aos 70 km/h.

Faixa 09. Live and Let Die.

— Diminuiu por quê?

A voz de seu irmão parecia mais grave do que o normal e o tirou de seus devaneios. Ricardo conhecia aquele tom de voz. Era um desafio. Ricardo olhou mais uma vez para Matheus; mas seu rosto estava totalmente virado para fora. Não era possível ver sua expressão. Pensou em questioná-lo, não queria entrar naquela disputa. Ele não era tão bom motorista quanto o primogênito de seu pai. Era inexperiente e aquela era uma noite chuvosa. Mas ele conhecia aquele tom de voz.

Aumentou a velocidade. Viu pelo canto do olho um leve sorriso de Matheus.

“Babaca!” — pensou.

As brincadeiras começaram inocentes. Matheus era o conhecido na escola. O líder, o Alfa, como ele costumava se chamar. Começou a botar banca de valentão e juntou a sua turma de valentões. Colocava medo em todos, e isso lhe dava uma sensação muito boa. Poder. Ricardo acompanhava. Gostava da sensação de poder também.

Soco inglês, taco de beisebol, alcool, cigarro.

Outro carro na mão contrária. Também em alta velocidade. De madrugada, todos trafegavam em alta velocidade. Mas aquele piscava o farol insistentemente.

“O que…?”

Olhou para o painel. O velocímetro marcava 150 km por hora. Desacelerou.

Logo em frente, havia os sinais do que pareciam indicar um acidente. Os galhos partidos, as marcas de pneu no asfalto, o veículo jogado para fora da curva. Ricardo desviou o olhar e voltou a se concentrar no seu caminho.

Outro carro. A chuva caía cada vez mais forte. O pára-brisa, embaçado, aumentava a sensação de angústia no motorista. Ligou o desembaçador. A chuva caía, agora, torrencialmente, e só se ouvia o seu tamborilar na lataria. Aumentou o som do CD player. Bad Apples.

Seu pai fora até compreensivo com as primeiras brincadeiras. Mas a sua compreensão desapareceu quando teve de ir até a delegacia para pagar-lhes a fiança. Pela primeira vez, gritou com eles. Disse que não queria mais saber daquilo. Estava muito nervoso. Discutiram. Acabou batendo em Matheus. Um tapa na cara. Não, um soco. Forte, vigoroso.

— Falta muito? Não dá para ver nada com esta chuva… — Ricardo perguntou.

— Já estamos chegando — foi a resposta de Matheus.

“Será que esta é a única solução?”

Ele e Matheus já tinham pensado em tudo. Teriam que tomar medidas drásticas. Depois da delegacia, seu pai tirou-lhes toda a liberdade, tirou-lhes tudo que lhes importava. Não podiam sair, não tinham dinheiro, não podiam fazer nada que gostavam; mas, depois de algumas semanas, ele já tinha esquecido, mergulhado em seu mundinho de dividendos, superávits, duplicatas. As brincadeiras recomeçaram.

Soco inglês, taco de beisebol. Álcool, cigarro, maconha, cocaína. Primeiro, um 38; depois, uma semiautomática.

“Será que esta é a única solução?”

Faixa 15. Perfect Crime.

As coisas realmente mudaram depois da última brincadeira. Ricardo lembrava-se muito bem da expressão de seu pai quando entrou no quarto e viu Matheus com a arma na mão. Gritou com os dois, como nunca tinha gritado antes. Gritou mais alto do que na delegacia. Mas não da forma firme, frio e segura de outrora; mas, sim, de uma forma desesperada, dolorosa, amargurada. Ricardo ainda ouvia aquela voz à noite, juntamente com o estampido do tiro. Ricardo ainda ouvia.

À noite, em seus pesadelos.

— Com medo?

A voz de Matheus arrancou Ricardo mais uma vez de suas lembranças.

“Será que é a única solução?”

— Não. — mentiu Ricardo.

— Então vamos lá.

Ricardo girou o volante com decisão, apesar de toda a insegurança que trazia em sua alma. Quando saiu da estrada, o carro, aos solavancos, saltou, rangeu, guinchou, chiou. A curva foi deixada para trás, trafegavam sobre as pedras e o mato e, à frente, o rio se aproximava.

Nervoso, Ricardo levou a mão à lateral do banco. Em um momento de lucidez, buscava soltar o cinto de segurança. Com a mão trêmula, suada, não conseguia achar o botão.

Faixa 13. Don’t Cry.

De repente, o carro voou. Não se ouvia mais a chuva, o CD player, o motor. Os segundos passaram. E passaram. E passaram. Até o mergulho do carro nas águas turvas e nervosas do rio. Enfim, o silêncio.

Ricardo foi encontrado no dia seguinte. Foi enterrado no mausoléu da família, em uma cerimônia simples, assim como tinha sido o funeral do seu irmão, semanas atrás. Seu pai não compareceu; disse que não conseguiria enterrar outro filho. O caixão foi cuidadosamente colocado junto ao de Matheus. Um dos colegas de escola dos dois levou um player de música e tocava baixinho o instrumental de “Knockin’ On Heaven’s Door”, a música preferida de Matheus.